quarta-feira, 19 de junho de 2024

Cacarejo de Momo

AJ Fontes

 

Meu reino por uma cerveja! Gritei enquanto era levado no arrocho da Concórdia em pleno sábado de Zé Pereira. Não alcançava o chão e quando tocava com as pontas dos pés impulsionava o corpo e levantava a cabeçaem busca de ar para respirar. Uma massa que se arrastavana via estreita do centro do Recife.

Bem diferente do grupo vestido de almas penadas que assisti da porta de “A Primavera” em um carnaval que nem lembrava mais. Pulavam e cantavam acompanhados por uma orquestra de metais antecedidos por um estandarte: Clube Galo da Madrugada, afinal precisaram de toda a noite para organizar fantasias, músicos e tudo mais para sair no comecinho do dia.

Muitos seguiram a família de Eneias, fundador do grupo, nesse e nos anos seguintes. Os seguidores foram tantos que em 1994 entrou para o hall recifense e mundial de “maior do mudo”. Não é em linha reta porque um milhão de foliões, dizem, atravessaria a cidade de norte a sul e não daria para ver os cantores, as orquestras, os pierrôs acompanhados ou não de colombinas, palhaços, burrinhas e outros bichos.

Quem diria que um punhado de gente foliã fosse capaz de fechar o comércio e aumentar, na vera, um dia de carnaval. E eles só queriam ressuscitar o carnaval de rua. Na vera que, inspirados por eles, outros grupos se juntaram e começaram a preencher as ruas nos bairros da Capital do Frevo tocando flauta com Lili, Segurando o Talo ou o chifre do touro até chegar no Recife Antigo onde o povo se juntou a cantar e dançar a dança frevente.

E não é que fui atendido! Sem precisar dispor de meu reino, que nem tenho. Vi um pedaço do calçamento no meio da Concórdia. E, na vera, tinha um vendedor com uma caixa de isopor. A placa dizia é dez. O tempo parou, o som dos clarins ecoou distante e em passos de câmara lenta cheguei, entreguei a cédula, abri a latinha e, feito um vulcão, a espuma subiu. O que sobrou eu bebi.

Na vera? Nem senti se estava quente.

terça-feira, 11 de junho de 2024

Paz e amor

AJ Fontes

 

    - Rapaz, passei uns quatro anos.

    - Mas, você saiu do Brasil?

    - Não. Rodei pelo sul, fui até Roraima, Mato Grosso, Minas, Bahia...

    - E por que não ficou lá no sul? Todo mundo diz que é bom viver em São Paulo. Esteve lá, né?

    - Estive, mas na capital só de passagem. O negócio foi que estava em Goiás, na Chapada dos Veadeiros, com uns amigos que fiz por lá. A gente acampou perto da Cachoeira dos Couros, lugar maneiro.

Chico trouxe outra Brahma e jogou a garrafa vazia na areia fina embaixo da mesa redonda de madeira, apoiada em um toco de coqueiro fincado no chão.

    O jovem de rosto enrugado pela vida segura a cabeleira lisa, negra e farta até os ombros, mexida pelo vento marinho, levanta os dedos em V. Valeu irmão. Puxa e solta a fumaça do cigarro com o olhar na espuma das ondas.

    - Sim... da Chapada a gente resolveu pegar estrada pra São Paulo. Um cara veio de lá e contou de uma cidadezinha, Embu das Artes, onde rolava uma feirinha de artesanato e a gente precisava faturar algum. Cada um levou a sua produção. Cara, tu não imagina a grana que rolou. Ficou todo mundo bonitinho.

    - E por que não ficou por lá?

    Engasgado com a cerveja e com o riso, levantou buscando ar para retomar o fôlego e sentou novamente. Mais calmo, encarou o menino.

    - Eu saí daqui pra conhecer gente diferente, lugares diferentes, pensamentos diferentes. Não foi pra ganhar dinheiro.

    - Sim, dessa vez arranjaram dinheiro e deu pra comprar coisas, mas normalmente como fazem pra comprar comida... roupa ou remédio?

    - Roupa usada, dada ou comprada ou trocada. Comida a gente encontra mais fácil no mato: fruta, água. Não precisa comer carne; na cidade, mesmo olhando enviesado, pra um cara sujo e rasgado, as pessoas dão. Remédio tem no mato ou no hospital.

    - Tô pensando se teria coragem de sair de casa agora, com quinze anos, deixar minha família, amigos... os estudos que acho importantes pra futuro. Você tem pai, mãe, irmãos?

    - Tenho. Gosto dos velhos. Dá saudade às vezes. Aí descolo algum, compro fichas e ligo de um orelhão, quando acho.

    - Desculpa perguntar tanta coisa, mas quero entender.

    - Tudo bem, cara. Tu é legal.

    O olhar vagueia, escondendo do rapaz o cinismo estampado no rosto ou pelo efeito do comprimido que engoliu junto com a bebida.

    - Estudar, estudei até o científico, mas cara... não é a minha. Pra mim vale conhecer. Lembro de um cara numa praia do Ceará... Mucuripe. Gênio! Foi padre, estudou filosofia, música, medicina. Resolveu parar tudo e compor. 

    Ele passa o fundo do copo na mesa e sorri enquanto busca a lembrança do momento distante.

    - Um amigo negociava a Santa Maria... 

    O quê?

    - Maconha.

    - Tá.

    - Ele aparecia com o violão na beira da praia. Arretado! Tem uma música dele: As velas do Mucuripe... a gente lá... o cheiro, feito esse daqui... de mar... não tem melhor não, meu irmão.

    O novo amigo, braços cruzados sobre a mesa, observa o riso contínuo e o olhar distante.

    - Em qualquer lugar você encontra a... Santa Maria?

    Depois de um ou dois minutos encarando o menino, como quem se questiona se ele é ou não dedo-duro, embora qualquer um em sã consciência duvide da capacidade de ele discernir a respeito no momento, suspirou, tomou um gole.

    - Na Amazônia era mais fácil tomar um chá de um cipó da mata que faziam para um ritual de uma religião que os caboclos tinham por lá. Às vezes aparecia LSD que conheci na Serra da Cantareira, em São Paulo. Umas viagens muito doidas que conseguia quando encontrava gringos da Europa visitando os índios.

    - Mas, aí você voltou.

    - Pois é. Bateu saudade mesmo.

    - Da família, amigos?

    - Amigos... não sei. Melhor dizer da turma da rua. A do colégio era besta, chata.

    Os coroas me receberam como seu eu tivesse ido no fiteiro da esquina comprar cigarro. Cara! Descobri o amor.

O sussurro das ondas cobriu o choro, mas as lágrimas, não escondeu.

    - Muito amor, mas... a vida é mais. Preciso encarar o que não sei de mim e junto deles não dá.

    - Por isso está aqui? Perto de casa, mas longe suficiente pra eles não se meterem na sua vida.

   - É isso, moleque. Tu sabe das coisas pra caralho. Aqui em Calhetas tenho tudo isso em volta; ouço meu sotaque; vejo meu povo. Por isso peguei carona e voltei.

    - Agora, fica?

    Não disfarça um sorriso.

    - Sei lá! Até pensei em chegar em London, London. De repente:

      Bye-bye, Brasil.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Havemos pão


                                                                                                                                                                             AJ fontes

    Vim, vi  e venço, cada instante vivido, diferente de Júlio, o César, estou na batalha que findará um dia. Findar não é coisa certa visto ser possível manter os acumulados no célebre cérebro, chamados de consciência, para além do finado conjunto biológico por ora metida.

    A bem do vero, venho nem sei de onde, tão pouco de quando, em nome da sanidade pelejar comigo mesmo. Isso me guarda entre pares e díspares a comungar dias,   seguindo o regrado por uns, acolhido no espaço que nos cabe no infinito. Tão infinito quanto os cérebros não tão célebres a expor o não limite do pensar aos convivas que se alimentam de pão e graças por aceite às regras dos eternos vencedores. 

domingo, 26 de maio de 2024

Vermelho e Oliva


Vermelho e Oliva

AJFontes

 

              Resta ainda um cheirinho do peru da festa. Os olhos embaçados acostumam devagar ao sol do feriado. A luz vaza a janela, corta as cobertas. Entre as camas, um brilho ofusca. Meu irmão esfrega os olhos: Ele chegou? Descemos das camas e nos aproximamos. Nossos olhos arregalados se encontram. Chegou! Elegemos a posse. Toco os punhos, o selim. É de verdade. Vou usar as rodinhas só até começar as aulas.

              No Externato Nossa Senhora Auxiliadora, reiniciei com as letras, palavras e números. Continuo a usar as rodinhas, por determinação de mamãe, mas quase não tocam no chão.

A casa alta se encostava no morro do Bom Jesus. No terraço, acho graça ver os carros na rua e as pessoas na calçada do outro lado. Todos pequeninos.

Depois de estudar a lição posso descer a longa escada, ao lado do jardim, até o portão e chego à calçada alta. Inicio mais uma viagem alucinante, à toda velocidade. Desvio de árvores, cachorros, estudantes. Freio na ladeira, na entrada do sítio onde se escondem os favos do mel mais doce do mundo, guardados por abelhas ferozes. Adiante a praça onde o jacaré espera um desavisado cair no lago para abocanhar, calando um longo grito. Desço, faço a manobra, monto e retorno. Na passagem, ficam minha mãe, a vizinha, os amigos. Admiram minha destreza.

Na solidão da calçada, estrada sem fim, chego ao outro lado. A ladeira interrompe minha história. Arfando, equilibro com os pés, apoio o queixo no guidom e observo as casas emparelhadas, no outro lado da rua. O pensamento mergulha na janela de tábuas amarelas: A mão enrugada afasta a cortina de chita esgarçada, pega o caderno de capa encardida, dentro da lata de biscoito enferrujada na prateleira mais alta. Os fios brancos, desgrenhados se aproximam das folhas com a pontas sujas e arrebitadas. Os olhos esbranquiçados vasculham as palavras a lápis e os perdigotos saltam dos lábios murchos quando repete frases mais antigas que ela.

A bola de Pedro, amigo que mora duas casas depois da minha, faz os heróis solitários esquecerem as montarias em algum canto da calçada. Riscamos as marcas dos gols no chão. No intervalo das partidas, na intimidade dos círculos formados, segredos são revelados.

- Meu pai disse que agora, tudo vai melhorar. Eles, agora vão ver.

- Quem são eles?

- Sei lá!

- Se vai melhorar, por que todo mundo está triste?

Sérias, as pessoas passam por nós. Os carros se repetem verdes e abafam a alegria dos brancos, vermelhos e amarelos.

Pedalo e não consigo brincar porque as histórias não surgem. Como se alguém empurrasse a porta e não as deixasse sair da minha cabeça.

Mais uma fila de carros verdes e um caminhão, entre eles. Param na frente da casa de paredes encarnadas. O chiado agonizante dos freios me perturba e quase caiu da calçada alta. Homens de botinas pretas e roupa verde pulam do caminhão. Outros, com fuzis, saem dos jipes e batem na porta. Batem com as armas, até que as bandas se abrem. Entram correndo. Nada mais, eu ouço.

Um pássaro empoleira no poste defronte. Um baque surdo, o passarinho voa, abro a boca ao ver os homens que saem da casa com coisas nas mãos e jogam na carroceria. Apuro a vista.

Desço, faço a manobra, subo e pedalo rápido. Na frente de casa o suor escorrer na testa e o peito tamborila. Encontro o rosto de mamãe. Ela, debruçada no muro, desfaz as rugas na testa, sorri. Eu acalmo a respiração.

- São livros.

- Sim, meu filho.

- E os meus?

Ela sorri.

- Estão seguros.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Quero mesmo é brincar


AJ Fontes

    Mastigo o último pedaço torrado do pão e giro a maçaneta da porta do escritório com a mão lambuzada de manteiga. Ainda bem que ninguém viu. 

    O vovô me deixa entrar na sala do tesouro, mas aponta o dedo no meu nariz, franze a testa e diz: cuidado!

    Um pé depois do outro, passo as mãos na barra da camiseta, cheiro. A manteiga se foi. Olho do chão ao teto. Abro os braços, viro a cabeça para o alto e giro o corpo. Que legal! Livros: vermelhos, verdes, amarelos, pretos iguais meus cabelos; alguns são grossos feito a Bíblia, outros parecem uma folha de papel.

    O de capa velha, arranhada. Espicho o corpo, fico na ponta dos pés, mas não alcanço. Deve ter muita coisa legal para ler. Aqueles, lá no alto, você vai ler quando for desse tamanho. Vovô espalma a mão mostrando a altura e ri que nem Papai Noel, balançando a barriga.

    Escorrego os dedos nos nomes dos livros e paro em um. Não é tão grosso. Levo à poltrona, sento com ele no colo, inspiro o cheiro bom das páginas, desenho as letras douradas na capa: A batalha dos Guararapes. Aliso uma página de papel grosso, lisinho; depois outra e mais uma.

    De repente corro ao lado de um índio lançando uma flecha que zune no espaço; um estouro de arcabuz e um homem no meio da fumaça, vestido de vermelho grita viva ao rei de Portugal e avança com um facão em punho; outro, de chapéu engraçado de metal, cavanhaque ruivo no rosto, trinca os dentes e nossas espadas tinem ao se encontrarem.

    Uma mancha azul cintilante atravessa a página de um lado para o outro, para cima e para no ar. É um beija-flor que me encara e zummm... atravessa a janela aberta no meio da livralhada. Se esconde atrás das folhas verdes agitadas pelo vento onde uma brecha deixa passar um raio do sol que brilha cada vez mais forte, entra pelos olhos, toma a cabeça, pescoço, peito; chega na barriga e nas pernas.

    Um estalo enche meus ouvidos, os pelos do corpo arrepiam. Flutuo naquela imensidão, sem paredes, chão, teto ou qualquer coisa.

    Não ouço o tum-tum do coração no meio do silêncio. Bolhas surgem azuis, amarelas, vermelhas. Crescem, explodem e se misturam e se transformam em verde, laranja, marrom, lilás. Chegam ao branco e fica tudo quieto. Eu também.

    Balanço a cabeça, pisco quando percebo os braços sumindo. Meu Deus! Estou morrendo! Ou sumindo! Não vou existir mais. Quero voltar! Mas, voltar de onde?

     Socorro, alguém me ajude! Mexo o corpo, não saiu do lugar. Estou escorrendo feito mel! Mas nada acontece. Fecho os olhos, respiro fundo, bem devagar.

    O corpo está mais leve... invisível. Apalpo os braços, pernas; a barriga. Sinto, mas vejo só o contorno. Será um sonho? Belisco a bochecha. Aí, dói! O ar passa pelo corpo ou onde ele deve estar. Sou um menino invisível!

    Balanço a cabeça novamente. As folhas verdes na janela, as paredes, os livros, a poltrona. Não vejo, mas tenho certeza de que estão no lugar. Estou sentado com o livro no colo, apenas não preciso ver ou tocar, cheirar, ouvir para saber que tudo está aqui.

    Coloco o livro invisível na mesinha invisível ao lado e caminho sobre o tapete invisível sob meus pés invisíveis.

    Da janela a luz vem de toda parte ou de sóis que não aparecem, feito o conhecimento da história da Terra. Sei tudo até hoje.

    Aliás, hoje é o dia 18 de abril de 2975.

    Como sei disso? Só sei.

    Escolho qualquer assunto e já conheço. Pode ser o Bóson de Higgs, conhecido como a “partícula de Deus” ou as mudanças de nosso corpo biológico iniciado na ameba, passando pelo macaco, o homem inteligente, chegando ao de hoje: “invisível”.

    Só a felicidade não aparece na minha cabeça. Quando penso nela, lembro de vovô, dos amigos de brincadeira.

    Sento na poltrona, relaxo. Quero voltar. Fecho os olhos e o pensamento vai apagando, apagando...

    - Paulinho, cadê você?

    Abro os olhos e reconheço os livros, inclusive o que deixei sobre a mesinha ao lado; reconheço a janela e o raio do sol entre as folhas que balançam lá fora. Tudo está no mesmo lugar.

    - Vai ou não vai jogar?

    Sorrio quando o beija-flor pousa no meu ombro, encosta o bico no meu rosto e voa pela janela.

    - Só falta você no time!

    Agora, conheço algumas frases dos livros lá do alto, mas uma coisa eu quero muito. Corro até a janela.

    - Esperem por mim!

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Haja tempo

 

Haja tempo

AJ Fontes

Eita! Enta não falta, já se foram sessenta equinócios. Desses que deixam marcas na pele, então haja creme protetor e camisa à prova de UV. Conto mais: as ites; surgem tal magia, do nada. Uma em especial aflige minha mão esquerda, fosse a direita não estaria usando a vetusta técnica da escrita à base de caneta e papel.

Voltando à sestra, uma dor forte me impediu o uso comum do polegar. Essa tal pinça equipa mãos de primatas desde o macaco, vindo o aprimoramento anatômico surgir no homem sendo posicionado e alongado da maneira àquela função acontecer e, então, segurar pedras e ferramentas usadas na produção da lança, e fincá-la na caça; do machado afiado e cortar árvores; da agulha e juntar fibras, tecidos para guardar sementes, frutas e carnes. Aliás, passa despercebida a importância da guarda de tudo adquirido.

Esse dedão, a cada movimento, fosse mínimo, doía muito. O doutor resolve ou ajuda bastante na solução utilizando avanços tecnológicos. Viva a tecnologia! Ela aconteceu após ser possível observar, analisar, imitar e melhorar funções de outras espécies que partilham conosco da pátria mama. Tocamos também esse corpo acolhedor e provedor com o intuito de montar coisas utilizáveis, desnudando-o  progressivamente. Hoje, olho para o céu, não para o Altíssimo e sim para a câmara acoplada ao drone pairando acima de tudo e todos, usando o dedão curado.

 É de pensar que vive a cabeça, e de tanto pensar algumas percebem o jeito de nos arranjar aonde chegamos e imaginam os arranjos à frente, sejam aqui, em Marte ou em uma estação no espaço.

Acontecerá uma das tantas fatalidades trombeteadas em livros e filmes? Ou ocorrerá a recuperação planetária, aí incluindo nossa raça, revelando relações diversas com os produtos dos conhecimentos abarcados.

Esses conhecimentos vêm proporcionando, desde antes de antes do meu nascimento, o necessário para chegar.

Eita! Aos meus centos.

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Amplitude Modulada

 

Amplitude modulada

AJFontes

 

O Sputnik II passeou com Laika no espaço sideral há mais de uma década. O norte inunda de novidades o lado de baixo do equador. Na Aquarela do Brasil, entre os altos coqueiros, num canto de chão agrestino, a primeira espinha reflete no espelho embaçado. No queixo, abaixo do nariz que não para de crescer.

- Não deixe a toalha no chão!

Arrasto o cheiro do almoço na travessia do corredor, ao lado da cozinha, cantando chiclete com banana. Fecho a porta, jogo a toalha na cama. Abro o guarda-roupa, tiro a samba canção da gaveta, a calça azul-marinho e a camisa volta ao mundo. Apanho o rádio de pilha no canto, entre a lateral da cama e o colchão.

Sem a presença dos irmãos, que estudam no período da manhã, faço o dever de casa na mesa da copa, ouvindo Dalva de Oliveira, interpretada pela ex-cantora do coral da igreja, minha mãe.

- Está prestando atenção à lição?

- Eu tô...eu tô. Volto para o livro, sem entender como ela, de costas, enxerga os cochilos na mesa.

Tenho um tempo livre, agora. Atravesso a sala entre os móveis. A cristaleira, fica na parede do outro lado dos dois quartos. A televisão, em cima da mesinha de canelas finas, só funciona no fim da tarde. Empurro a cadeira de balanço no chão do terraço e ouço as canções que você fez pra mim. A nuvenzinha balança no céu azul. No meio da avenida, as vagens secas penduradas nos galhos dos flamboaiãs chacoalham quando os carros passam para lá e para cá. Ouço os risos das meninas que voltam do colégio e ajeito o corpo.

- O almoço está na mesa!

- Já vou.

Na Capital do Agreste são precisamente onze horas e quarenta e cinco minutos. A hora certa é um oferecimento das organizações... Pronto. Ela brilha no meio das outras. A morena olha na minha direção e ilumina o terraço. Vira o rosto e levanta o nariz quando esboço um sorriso.

O prato com feijão, arroz, farofa d’água e carne de molho, preenche o vazio do estômago. O ponche de laranja ajuda a descer e a fatia de goiabada sara as feridas do coração. No meio do silencio que toma conta do mundo, após o repouso dos talheres, sento na cama. A cabeça tomba, os olhos insistem em fechar. Que nem robô, calço os sapatos, visto a camisa da farda, apanho a bolsa de couro com os livros. O rádio fica no canto.

A sombra se esconde embaixo dos pés, na calçada. As engrenagens da cabeça são azeitadas com as novas histórias e piadas dos colegas encontrados nas esquinas. Não atinamos quando os paralelos do calçamento se transformam na areia da estrada que nos leva ao prédio em L, solto no terreno sem muros.

Na sala de paredes altas, janelões abertos, ecoam os gritos e vozes desafinadas; os assentos das carteiras estalam ao sentarmos. A professora de português entra depois do toque da campainha. Dona Celeste, acompanha a turma desde o exame de admissão. Na segunda aula, Ismael conta histórias antigas e novas. Um dia, não entendi alguma coisa e questionei. Aproximou com o dedo nos lábios. Hoje em dia a gente não fala tudo que pensa. As paredes têm ouvidos. Calei. Lembrei da conversa com os amigos e tentei identificar o dedo-duro.

As conversas, brigas, o ensaio da banda e o caminho de volta, são os mesmos de ontem. Também se repetem as brincadeiras dos irmãos entre os canteiros de casa que atravesso rápido.

Volto a tempo de ver mamãe se despedir da vizinha, por cima do muro da casa gêmea com a nossa. Eu encosto no portão. Gosto do chorinho que ouço no rádio. Passam as pastas, bolsas e o pacote de pão, na mão desse pedacinho do céu. O vestido florido esconde só um pouquinho das coxas e o decote descobre o colo do peito. Olha pelo canto do olho, morde o lábio inferior para esconder o sorriso quando passa. As ancas ondulam. Eita! As flores coloridas encontram o linho branco das calças de papai.

Dou meia-volta, afundo no sofá e grudo os olhos na televisão.

- Benção papai?

- Deus te abençoe.

As propagandas, nos intervalos de Nacional Kid, hipnotizam. Acordo com o cheiro da sopa e a família corta o pão, passa a manteiga e sorve a primeira colherada. As histórias do dia alcançam o último gole de café.

Diferente da hora do almoço, meu corpo não para.

-  Mamãe, vou passear na calçada.

- Volte às nove.

- Dez.

- Nove horas. Nem um minuto a mais.

Poucos ousam incomodar a avenida. No prédio cinza da Rádio Difusora, luzes salpicam os jardins. Atravesso o portão e leio o anuncio da peça A feira de Caruaru, no cartaz ao lado da entrada do teatro.

O homem que se aproxima passa todos os dias em frente de casa.

- Tudo bem? Gosta de teatro?

Aceno que sim, com a cabeça.

- Vital! Vamos começar.

Ele entra, olha para trás.

- Vem. Assiste ao ensaio.

Entro em uma fila e sento no meio do mar de cadeiras, ouvindo as mulheres cantando. Um homem, parado ao lado. Não, não, não! Vital levanta de uma fila mais adiante, sobe no palco, fala com as mulheres, volta. Elas cantam novamente. Isso, isso! Vital aplaude. Eles repetem mais uma vez, e outra. A cara marcada, do homem no palco lembra o matuto que vi ontem na rua perto da feira. Desceu do Jeep Willys, pagou o frete, baixou o garajau da capota, ajudado pela filha, alvinha, olhos verdes. Ficaram um tempo parados na frente da loja, vendo o LP girar na radiola. Será que ele conseguia ler o nome da marca Abc canarinho, no cartaz? Talvez, de ouvir, conhecesse a música: A volta do boêmio.

Com as mãos no bolso, ando pela calçada. Cansei de ouvir o pessoal repetir. Para eles é trabalho.

- Boa noite, moço.

Magro, alto, capote dobrado no ombro, cassetete pendurado no punho. A camisa branca deixa à mostra o cabo da peixeira. Talvez esconda um revólver. Quieto nas sombras, observa os movimentos. Conhece as trabalhadoras das casas, nos quarteirões próximos, conquistadas com a fala mansa, cabeleira cheia, preta igual ao bigode bem aparado. Faz-se meu amigo, talvez pela satisfação em substituir o tio que ensina os sobrinhos apressados em crescer. Então, ele conta as melhores piadas, os detalhes dos namoros que aproveito nas orgias solitárias e as notícias das moças.

Tem uma que vive perguntando por você. Sei quem é. Também sei que uns caras levaram dedada do enfermeiro Heleno e dizem que pegaram a doença com ela. Calma rapaz, eu mesmo verifiquei. Tá tudo certo. Aparece o anel de prata escurecida no dedo, quando ele tira o palito de fósforo do canto da boca. Falando na diaba, lá vem.

No escuro embaixo da algaroba, a silhueta parada. O apito estridente se afasta, eu calo os medos que aceleram o coração e desço a ladeira da rua. Vejo os peitos, pelo decote do vestido justo. Ela avança e a luz mostra o dente de ouro na boca arrodeada de carmim, as rugas nos cantos dos olhos. O cheiro do Alma de Flores me envolve.

- Eu gosto de ver você sentado no terraço da sua casa, ouvindo o radinho de pilha.

Talvez o perfume ou o risco dos bicos dos peitos em mim, a razão da tontura e mudez.

- Nunca teve uma mulher, né? Vem cá.

Lado a lado na calçada, vemos as estrelas assumindo o direito de mostrar o caminho entre as moitas até a pequena clareira. Os grilos calam.

Sinto a respiração no rosto. Os lábios roçam no pescoço, arrepio. O peito magro aparece a cada botão aberto. A mão desliza e me encontra viril. O corpo se entrega e a cabeça se espalha nas estrelas.

A cantiga do inseto me traz de volta ao chão pedregoso. Que horas são?

Os dias feitos de minutos que se arrastam me trazem ao espelho embaçado, passando a mão nos pelos do queixo. Tá na hora. Aperto o cabo rosqueado na outra parte com a gilete. Espremo o creme no pincel e esfrego. Demora, mas aparece espuma no rosto. Tudo do jeito que vi. Na mesa, faço de conta que não reparo papai colocar a xícara no pires, olhar meu rosto e sorrir.

As estrelas aproveitam a ausência da lua e brilham. Luzes coloridas piscam na parede do terraço, refletindo às lâmpadas da árvore montada na sala, junto aos outros enfeites. Balanço a cadeira e, feito trailer de filme, o ano passa no teto do terraço. Quem é o tal dedu-duro? O rei sabe das coisas: O tempo apagou a paixão pela morena. Essa época só dá ele no rádio, mas foi no São João que olhei pro céu e encontrei o amor. Era linda! Mas em agosto ou setembro, a gente acabou. Acho que tive outra namorada, não lembro. Somente uma mulher não sai da cabeça.