AJ Fontes
Mastigo o último pedaço torrado do pão e giro a maçaneta da porta do escritório com a mão lambuzada de manteiga. Ainda bem que ninguém viu.
O vovô me deixa entrar na sala do tesouro, mas aponta o dedo no meu nariz, franze a testa e diz: cuidado!
Um pé depois do outro, passo as mãos na barra da camiseta, cheiro. A manteiga se foi. Olho do chão ao teto. Abro os braços, viro a cabeça para o alto e giro o corpo. Que legal! Livros: vermelhos, verdes, amarelos, pretos iguais meus cabelos; alguns são grossos feito a Bíblia, outros parecem uma folha de papel.
O de capa velha, arranhada. Espicho o corpo, fico na ponta dos pés, mas não alcanço. Deve ter muita coisa legal para ler. Aqueles, lá no alto, você vai ler quando for desse tamanho. Vovô espalma a mão mostrando a altura e ri que nem Papai Noel, balançando a barriga.
Escorrego os dedos nos nomes dos livros e paro em um. Não é tão grosso. Levo à poltrona, sento com ele no colo, inspiro o cheiro bom das páginas, desenho as letras douradas na capa: A batalha dos Guararapes. Aliso uma página de papel grosso, lisinho; depois outra e mais uma.
De repente corro ao lado de um índio lançando uma flecha que zune no espaço; um estouro de arcabuz e um homem no meio da fumaça, vestido de vermelho grita viva ao rei de Portugal e avança com um facão em punho; outro, de chapéu engraçado de metal, cavanhaque ruivo no rosto, trinca os dentes e nossas espadas tinem ao se encontrarem.
Uma mancha azul cintilante atravessa a página de um lado para o outro, para cima e para no ar. É um beija-flor que me encara e zummm... atravessa a janela aberta no meio da livralhada. Se esconde atrás das folhas verdes agitadas pelo vento onde uma brecha deixa passar um raio do sol que brilha cada vez mais forte, entra pelos olhos, toma a cabeça, pescoço, peito; chega na barriga e nas pernas.
Um estalo enche meus ouvidos, os pelos do corpo arrepiam. Flutuo naquela imensidão, sem paredes, chão, teto ou qualquer coisa.
Não ouço o tum-tum do coração no meio do silêncio. Bolhas surgem azuis, amarelas, vermelhas. Crescem, explodem e se misturam e se transformam em verde, laranja, marrom, lilás. Chegam ao branco e fica tudo quieto. Eu também.
Balanço a cabeça, pisco quando percebo os braços sumindo. Meu Deus! Estou morrendo! Ou sumindo! Não vou existir mais. Quero voltar! Mas, voltar de onde?
Socorro, alguém me ajude! Mexo o corpo, não saiu do lugar. Estou escorrendo feito mel! Mas nada acontece. Fecho os olhos, respiro fundo, bem devagar.
O corpo está mais leve... invisível. Apalpo os braços, pernas; a barriga. Sinto, mas vejo só o contorno. Será um sonho? Belisco a bochecha. Aí, dói! O ar passa pelo corpo ou onde ele deve estar. Sou um menino invisível!
Balanço a cabeça novamente. As folhas verdes na janela, as paredes, os livros, a poltrona. Não vejo, mas tenho certeza de que estão no lugar. Estou sentado com o livro no colo, apenas não preciso ver ou tocar, cheirar, ouvir para saber que tudo está aqui.
Coloco o livro invisível na mesinha invisível ao lado e caminho sobre o tapete invisível sob meus pés invisíveis.
Da janela a luz vem de toda parte ou de sóis que não aparecem, feito o conhecimento da história da Terra. Sei tudo até hoje.
Aliás, hoje é o dia 18 de abril de 2975.
Como sei disso? Só sei.
Escolho qualquer assunto e já conheço. Pode ser o Bóson de Higgs, conhecido como a “partícula de Deus” ou as mudanças de nosso corpo biológico iniciado na ameba, passando pelo macaco, o homem inteligente, chegando ao de hoje: “invisível”.
Só a felicidade não aparece na minha cabeça. Quando penso nela, lembro de vovô, dos amigos de brincadeira.
Sento na poltrona, relaxo. Quero voltar. Fecho os olhos e o pensamento vai apagando, apagando...
- Paulinho, cadê você?
Abro os olhos e reconheço os livros, inclusive o que deixei sobre a mesinha ao lado; reconheço a janela e o raio do sol entre as folhas que balançam lá fora. Tudo está no mesmo lugar.
- Vai ou não vai jogar?
Sorrio quando o beija-flor pousa no meu ombro, encosta o bico no meu rosto e voa pela janela.
- Só falta você no time!
Agora, conheço algumas frases dos livros lá do alto, mas uma coisa eu quero muito. Corro até a janela.
- Esperem por mim!
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