Vermelho e Oliva
AJFontes
Resta ainda um cheirinho do peru
da festa. Os olhos embaçados acostumam devagar ao sol do feriado. A luz vaza a
janela, corta as cobertas. Entre as camas, um brilho ofusca. Meu irmão esfrega
os olhos: Ele chegou? Descemos das camas e nos aproximamos. Nossos olhos
arregalados se encontram. Chegou! Elegemos a posse. Toco os punhos, o selim. É
de verdade. Vou usar as rodinhas só até começar as aulas.
No Externato Nossa Senhora
Auxiliadora, reiniciei com as letras, palavras e números. Continuo a usar as
rodinhas, por determinação de mamãe, mas quase não tocam no chão.
A
casa alta se encostava no morro do Bom Jesus. No terraço, acho graça ver os
carros na rua e as pessoas na calçada do outro lado. Todos pequeninos.
Depois
de estudar a lição posso descer a longa escada, ao lado do jardim, até o portão
e chego à calçada alta. Inicio mais uma viagem alucinante, à toda velocidade.
Desvio de árvores, cachorros, estudantes. Freio na ladeira, na entrada do sítio
onde se escondem os favos do mel mais doce do mundo, guardados por abelhas ferozes.
Adiante a praça onde o jacaré espera um desavisado cair no lago para abocanhar,
calando um longo grito. Desço, faço a manobra, monto e retorno. Na passagem,
ficam minha mãe, a vizinha, os amigos. Admiram minha destreza.
Na
solidão da calçada, estrada sem fim, chego ao outro lado. A ladeira interrompe
minha história. Arfando, equilibro com os pés, apoio o queixo no guidom e
observo as casas emparelhadas, no outro lado da rua. O pensamento mergulha na janela
de tábuas amarelas: A mão enrugada afasta a cortina de chita esgarçada, pega o
caderno de capa encardida, dentro da lata de biscoito enferrujada na prateleira
mais alta. Os fios brancos, desgrenhados se aproximam das folhas com a pontas
sujas e arrebitadas. Os olhos esbranquiçados vasculham as palavras a lápis e os
perdigotos saltam dos lábios murchos quando repete frases mais antigas que ela.
A
bola de Pedro, amigo que mora duas casas depois da minha, faz os heróis
solitários esquecerem as montarias em algum canto da calçada. Riscamos as
marcas dos gols no chão. No intervalo das partidas, na intimidade dos círculos
formados, segredos são revelados.
-
Meu pai disse que agora, tudo vai melhorar. Eles, agora vão ver.
-
Quem são eles?
-
Sei lá!
-
Se vai melhorar, por que todo mundo está triste?
Sérias,
as pessoas passam por nós. Os carros se repetem verdes e abafam a alegria dos
brancos, vermelhos e amarelos.
Pedalo
e não consigo brincar porque as histórias não surgem. Como se alguém empurrasse
a porta e não as deixasse sair da minha cabeça.
Mais
uma fila de carros verdes e um caminhão, entre eles. Param na frente da casa de
paredes encarnadas. O chiado agonizante dos freios me perturba e quase caiu da
calçada alta. Homens de botinas pretas e roupa verde pulam do caminhão. Outros,
com fuzis, saem dos jipes e batem na porta. Batem com as armas, até que as
bandas se abrem. Entram correndo. Nada mais, eu ouço.
Um
pássaro empoleira no poste defronte. Um baque surdo, o passarinho voa, abro a
boca ao ver os homens que saem da casa com coisas nas mãos e jogam na
carroceria. Apuro a vista.
Desço,
faço a manobra, subo e pedalo rápido. Na frente de casa o suor escorrer na
testa e o peito tamborila. Encontro o rosto de mamãe. Ela, debruçada no muro,
desfaz as rugas na testa, sorri. Eu acalmo a respiração.
-
São livros.
-
Sim, meu filho.
-
E os meus?
Ela
sorri.
-
Estão seguros.
É a criança cuidando dos tesouros.
ResponderExcluirIsso mesmo
Excluir