quarta-feira, 19 de junho de 2024

Cacarejo de Momo

AJ Fontes

 

Meu reino por uma cerveja! Gritei enquanto era levado no arrocho da Concórdia em pleno sábado de Zé Pereira. Não alcançava o chão e quando tocava com as pontas dos pés impulsionava o corpo e levantava a cabeçaem busca de ar para respirar. Uma massa que se arrastavana via estreita do centro do Recife.

Bem diferente do grupo vestido de almas penadas que assisti da porta de “A Primavera” em um carnaval que nem lembrava mais. Pulavam e cantavam acompanhados por uma orquestra de metais antecedidos por um estandarte: Clube Galo da Madrugada, afinal precisaram de toda a noite para organizar fantasias, músicos e tudo mais para sair no comecinho do dia.

Muitos seguiram a família de Eneias, fundador do grupo, nesse e nos anos seguintes. Os seguidores foram tantos que em 1994 entrou para o hall recifense e mundial de “maior do mudo”. Não é em linha reta porque um milhão de foliões, dizem, atravessaria a cidade de norte a sul e não daria para ver os cantores, as orquestras, os pierrôs acompanhados ou não de colombinas, palhaços, burrinhas e outros bichos.

Quem diria que um punhado de gente foliã fosse capaz de fechar o comércio e aumentar, na vera, um dia de carnaval. E eles só queriam ressuscitar o carnaval de rua. Na vera que, inspirados por eles, outros grupos se juntaram e começaram a preencher as ruas nos bairros da Capital do Frevo tocando flauta com Lili, Segurando o Talo ou o chifre do touro até chegar no Recife Antigo onde o povo se juntou a cantar e dançar a dança frevente.

E não é que fui atendido! Sem precisar dispor de meu reino, que nem tenho. Vi um pedaço do calçamento no meio da Concórdia. E, na vera, tinha um vendedor com uma caixa de isopor. A placa dizia é dez. O tempo parou, o som dos clarins ecoou distante e em passos de câmara lenta cheguei, entreguei a cédula, abri a latinha e, feito um vulcão, a espuma subiu. O que sobrou eu bebi.

Na vera? Nem senti se estava quente.

terça-feira, 11 de junho de 2024

Paz e amor

AJ Fontes

 

    - Rapaz, passei uns quatro anos.

    - Mas, você saiu do Brasil?

    - Não. Rodei pelo sul, fui até Roraima, Mato Grosso, Minas, Bahia...

    - E por que não ficou lá no sul? Todo mundo diz que é bom viver em São Paulo. Esteve lá, né?

    - Estive, mas na capital só de passagem. O negócio foi que estava em Goiás, na Chapada dos Veadeiros, com uns amigos que fiz por lá. A gente acampou perto da Cachoeira dos Couros, lugar maneiro.

Chico trouxe outra Brahma e jogou a garrafa vazia na areia fina embaixo da mesa redonda de madeira, apoiada em um toco de coqueiro fincado no chão.

    O jovem de rosto enrugado pela vida segura a cabeleira lisa, negra e farta até os ombros, mexida pelo vento marinho, levanta os dedos em V. Valeu irmão. Puxa e solta a fumaça do cigarro com o olhar na espuma das ondas.

    - Sim... da Chapada a gente resolveu pegar estrada pra São Paulo. Um cara veio de lá e contou de uma cidadezinha, Embu das Artes, onde rolava uma feirinha de artesanato e a gente precisava faturar algum. Cada um levou a sua produção. Cara, tu não imagina a grana que rolou. Ficou todo mundo bonitinho.

    - E por que não ficou por lá?

    Engasgado com a cerveja e com o riso, levantou buscando ar para retomar o fôlego e sentou novamente. Mais calmo, encarou o menino.

    - Eu saí daqui pra conhecer gente diferente, lugares diferentes, pensamentos diferentes. Não foi pra ganhar dinheiro.

    - Sim, dessa vez arranjaram dinheiro e deu pra comprar coisas, mas normalmente como fazem pra comprar comida... roupa ou remédio?

    - Roupa usada, dada ou comprada ou trocada. Comida a gente encontra mais fácil no mato: fruta, água. Não precisa comer carne; na cidade, mesmo olhando enviesado, pra um cara sujo e rasgado, as pessoas dão. Remédio tem no mato ou no hospital.

    - Tô pensando se teria coragem de sair de casa agora, com quinze anos, deixar minha família, amigos... os estudos que acho importantes pra futuro. Você tem pai, mãe, irmãos?

    - Tenho. Gosto dos velhos. Dá saudade às vezes. Aí descolo algum, compro fichas e ligo de um orelhão, quando acho.

    - Desculpa perguntar tanta coisa, mas quero entender.

    - Tudo bem, cara. Tu é legal.

    O olhar vagueia, escondendo do rapaz o cinismo estampado no rosto ou pelo efeito do comprimido que engoliu junto com a bebida.

    - Estudar, estudei até o científico, mas cara... não é a minha. Pra mim vale conhecer. Lembro de um cara numa praia do Ceará... Mucuripe. Gênio! Foi padre, estudou filosofia, música, medicina. Resolveu parar tudo e compor. 

    Ele passa o fundo do copo na mesa e sorri enquanto busca a lembrança do momento distante.

    - Um amigo negociava a Santa Maria... 

    O quê?

    - Maconha.

    - Tá.

    - Ele aparecia com o violão na beira da praia. Arretado! Tem uma música dele: As velas do Mucuripe... a gente lá... o cheiro, feito esse daqui... de mar... não tem melhor não, meu irmão.

    O novo amigo, braços cruzados sobre a mesa, observa o riso contínuo e o olhar distante.

    - Em qualquer lugar você encontra a... Santa Maria?

    Depois de um ou dois minutos encarando o menino, como quem se questiona se ele é ou não dedo-duro, embora qualquer um em sã consciência duvide da capacidade de ele discernir a respeito no momento, suspirou, tomou um gole.

    - Na Amazônia era mais fácil tomar um chá de um cipó da mata que faziam para um ritual de uma religião que os caboclos tinham por lá. Às vezes aparecia LSD que conheci na Serra da Cantareira, em São Paulo. Umas viagens muito doidas que conseguia quando encontrava gringos da Europa visitando os índios.

    - Mas, aí você voltou.

    - Pois é. Bateu saudade mesmo.

    - Da família, amigos?

    - Amigos... não sei. Melhor dizer da turma da rua. A do colégio era besta, chata.

    Os coroas me receberam como seu eu tivesse ido no fiteiro da esquina comprar cigarro. Cara! Descobri o amor.

O sussurro das ondas cobriu o choro, mas as lágrimas, não escondeu.

    - Muito amor, mas... a vida é mais. Preciso encarar o que não sei de mim e junto deles não dá.

    - Por isso está aqui? Perto de casa, mas longe suficiente pra eles não se meterem na sua vida.

   - É isso, moleque. Tu sabe das coisas pra caralho. Aqui em Calhetas tenho tudo isso em volta; ouço meu sotaque; vejo meu povo. Por isso peguei carona e voltei.

    - Agora, fica?

    Não disfarça um sorriso.

    - Sei lá! Até pensei em chegar em London, London. De repente:

      Bye-bye, Brasil.

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Havemos pão


                                                                                                                                                                             AJ fontes

    Vim, vi  e venço, cada instante vivido, diferente de Júlio, o César, estou na batalha que findará um dia. Findar não é coisa certa visto ser possível manter os acumulados no célebre cérebro, chamados de consciência, para além do finado conjunto biológico por ora metida.

    A bem do vero, venho nem sei de onde, tão pouco de quando, em nome da sanidade pelejar comigo mesmo. Isso me guarda entre pares e díspares a comungar dias,   seguindo o regrado por uns, acolhido no espaço que nos cabe no infinito. Tão infinito quanto os cérebros não tão célebres a expor o não limite do pensar aos convivas que se alimentam de pão e graças por aceite às regras dos eternos vencedores.