segunda-feira, 17 de julho de 2023

Amplitude Modulada

 

Amplitude modulada

AJFontes

 

O Sputnik II passeou com Laika no espaço sideral há mais de uma década. O norte inunda de novidades o lado de baixo do equador. Na Aquarela do Brasil, entre os altos coqueiros, num canto de chão agrestino, a primeira espinha reflete no espelho embaçado. No queixo, abaixo do nariz que não para de crescer.

- Não deixe a toalha no chão!

Arrasto o cheiro do almoço na travessia do corredor, ao lado da cozinha, cantando chiclete com banana. Fecho a porta, jogo a toalha na cama. Abro o guarda-roupa, tiro a samba canção da gaveta, a calça azul-marinho e a camisa volta ao mundo. Apanho o rádio de pilha no canto, entre a lateral da cama e o colchão.

Sem a presença dos irmãos, que estudam no período da manhã, faço o dever de casa na mesa da copa, ouvindo Dalva de Oliveira, interpretada pela ex-cantora do coral da igreja, minha mãe.

- Está prestando atenção à lição?

- Eu tô...eu tô. Volto para o livro, sem entender como ela, de costas, enxerga os cochilos na mesa.

Tenho um tempo livre, agora. Atravesso a sala entre os móveis. A cristaleira, fica na parede do outro lado dos dois quartos. A televisão, em cima da mesinha de canelas finas, só funciona no fim da tarde. Empurro a cadeira de balanço no chão do terraço e ouço as canções que você fez pra mim. A nuvenzinha balança no céu azul. No meio da avenida, as vagens secas penduradas nos galhos dos flamboaiãs chacoalham quando os carros passam para lá e para cá. Ouço os risos das meninas que voltam do colégio e ajeito o corpo.

- O almoço está na mesa!

- Já vou.

Na Capital do Agreste são precisamente onze horas e quarenta e cinco minutos. A hora certa é um oferecimento das organizações... Pronto. Ela brilha no meio das outras. A morena olha na minha direção e ilumina o terraço. Vira o rosto e levanta o nariz quando esboço um sorriso.

O prato com feijão, arroz, farofa d’água e carne de molho, preenche o vazio do estômago. O ponche de laranja ajuda a descer e a fatia de goiabada sara as feridas do coração. No meio do silencio que toma conta do mundo, após o repouso dos talheres, sento na cama. A cabeça tomba, os olhos insistem em fechar. Que nem robô, calço os sapatos, visto a camisa da farda, apanho a bolsa de couro com os livros. O rádio fica no canto.

A sombra se esconde embaixo dos pés, na calçada. As engrenagens da cabeça são azeitadas com as novas histórias e piadas dos colegas encontrados nas esquinas. Não atinamos quando os paralelos do calçamento se transformam na areia da estrada que nos leva ao prédio em L, solto no terreno sem muros.

Na sala de paredes altas, janelões abertos, ecoam os gritos e vozes desafinadas; os assentos das carteiras estalam ao sentarmos. A professora de português entra depois do toque da campainha. Dona Celeste, acompanha a turma desde o exame de admissão. Na segunda aula, Ismael conta histórias antigas e novas. Um dia, não entendi alguma coisa e questionei. Aproximou com o dedo nos lábios. Hoje em dia a gente não fala tudo que pensa. As paredes têm ouvidos. Calei. Lembrei da conversa com os amigos e tentei identificar o dedo-duro.

As conversas, brigas, o ensaio da banda e o caminho de volta, são os mesmos de ontem. Também se repetem as brincadeiras dos irmãos entre os canteiros de casa que atravesso rápido.

Volto a tempo de ver mamãe se despedir da vizinha, por cima do muro da casa gêmea com a nossa. Eu encosto no portão. Gosto do chorinho que ouço no rádio. Passam as pastas, bolsas e o pacote de pão, na mão desse pedacinho do céu. O vestido florido esconde só um pouquinho das coxas e o decote descobre o colo do peito. Olha pelo canto do olho, morde o lábio inferior para esconder o sorriso quando passa. As ancas ondulam. Eita! As flores coloridas encontram o linho branco das calças de papai.

Dou meia-volta, afundo no sofá e grudo os olhos na televisão.

- Benção papai?

- Deus te abençoe.

As propagandas, nos intervalos de Nacional Kid, hipnotizam. Acordo com o cheiro da sopa e a família corta o pão, passa a manteiga e sorve a primeira colherada. As histórias do dia alcançam o último gole de café.

Diferente da hora do almoço, meu corpo não para.

-  Mamãe, vou passear na calçada.

- Volte às nove.

- Dez.

- Nove horas. Nem um minuto a mais.

Poucos ousam incomodar a avenida. No prédio cinza da Rádio Difusora, luzes salpicam os jardins. Atravesso o portão e leio o anuncio da peça A feira de Caruaru, no cartaz ao lado da entrada do teatro.

O homem que se aproxima passa todos os dias em frente de casa.

- Tudo bem? Gosta de teatro?

Aceno que sim, com a cabeça.

- Vital! Vamos começar.

Ele entra, olha para trás.

- Vem. Assiste ao ensaio.

Entro em uma fila e sento no meio do mar de cadeiras, ouvindo as mulheres cantando. Um homem, parado ao lado. Não, não, não! Vital levanta de uma fila mais adiante, sobe no palco, fala com as mulheres, volta. Elas cantam novamente. Isso, isso! Vital aplaude. Eles repetem mais uma vez, e outra. A cara marcada, do homem no palco lembra o matuto que vi ontem na rua perto da feira. Desceu do Jeep Willys, pagou o frete, baixou o garajau da capota, ajudado pela filha, alvinha, olhos verdes. Ficaram um tempo parados na frente da loja, vendo o LP girar na radiola. Será que ele conseguia ler o nome da marca Abc canarinho, no cartaz? Talvez, de ouvir, conhecesse a música: A volta do boêmio.

Com as mãos no bolso, ando pela calçada. Cansei de ouvir o pessoal repetir. Para eles é trabalho.

- Boa noite, moço.

Magro, alto, capote dobrado no ombro, cassetete pendurado no punho. A camisa branca deixa à mostra o cabo da peixeira. Talvez esconda um revólver. Quieto nas sombras, observa os movimentos. Conhece as trabalhadoras das casas, nos quarteirões próximos, conquistadas com a fala mansa, cabeleira cheia, preta igual ao bigode bem aparado. Faz-se meu amigo, talvez pela satisfação em substituir o tio que ensina os sobrinhos apressados em crescer. Então, ele conta as melhores piadas, os detalhes dos namoros que aproveito nas orgias solitárias e as notícias das moças.

Tem uma que vive perguntando por você. Sei quem é. Também sei que uns caras levaram dedada do enfermeiro Heleno e dizem que pegaram a doença com ela. Calma rapaz, eu mesmo verifiquei. Tá tudo certo. Aparece o anel de prata escurecida no dedo, quando ele tira o palito de fósforo do canto da boca. Falando na diaba, lá vem.

No escuro embaixo da algaroba, a silhueta parada. O apito estridente se afasta, eu calo os medos que aceleram o coração e desço a ladeira da rua. Vejo os peitos, pelo decote do vestido justo. Ela avança e a luz mostra o dente de ouro na boca arrodeada de carmim, as rugas nos cantos dos olhos. O cheiro do Alma de Flores me envolve.

- Eu gosto de ver você sentado no terraço da sua casa, ouvindo o radinho de pilha.

Talvez o perfume ou o risco dos bicos dos peitos em mim, a razão da tontura e mudez.

- Nunca teve uma mulher, né? Vem cá.

Lado a lado na calçada, vemos as estrelas assumindo o direito de mostrar o caminho entre as moitas até a pequena clareira. Os grilos calam.

Sinto a respiração no rosto. Os lábios roçam no pescoço, arrepio. O peito magro aparece a cada botão aberto. A mão desliza e me encontra viril. O corpo se entrega e a cabeça se espalha nas estrelas.

A cantiga do inseto me traz de volta ao chão pedregoso. Que horas são?

Os dias feitos de minutos que se arrastam me trazem ao espelho embaçado, passando a mão nos pelos do queixo. Tá na hora. Aperto o cabo rosqueado na outra parte com a gilete. Espremo o creme no pincel e esfrego. Demora, mas aparece espuma no rosto. Tudo do jeito que vi. Na mesa, faço de conta que não reparo papai colocar a xícara no pires, olhar meu rosto e sorrir.

As estrelas aproveitam a ausência da lua e brilham. Luzes coloridas piscam na parede do terraço, refletindo às lâmpadas da árvore montada na sala, junto aos outros enfeites. Balanço a cadeira e, feito trailer de filme, o ano passa no teto do terraço. Quem é o tal dedu-duro? O rei sabe das coisas: O tempo apagou a paixão pela morena. Essa época só dá ele no rádio, mas foi no São João que olhei pro céu e encontrei o amor. Era linda! Mas em agosto ou setembro, a gente acabou. Acho que tive outra namorada, não lembro. Somente uma mulher não sai da cabeça.

terça-feira, 4 de julho de 2023

 

   Retorno

AJ Fontes

Olá.

Dias passaram, não iguais ao porvir, tão pouco entre si. Foram-se afazeres, lugares, amigos. Aproximaram-se outras situações, boas ou não. Cada uma ocupando os instantes que lhes cabia; diga-se: transformações ocorreram trazendo saudades, medos, anseios.

Uma vontade veio longe no tempo e se manteve guardada nos pensamentos de caminhar estradas distantes, ver paisagens diferentes, distantes. Sem a pretensão de buscar qualquer coisa e apenas me embevecer com o caminho.

Desmanchei pensamentos acomodados tal a mesa na sala ou a cama no quarto da minha morada que não demorou, cada qual, arrumar outro canto que lhe coubesse. Sobraram os livros e documentos guardados em local sabido e seguro.

Num ponto do caminho encontrei certos Olhos Claros, passando a encontrá-los dias sim e outros também, enxergando novas trilhas à quatro olhos, mas as paisagens, aquelas diferentes, distantes, não deixaram de preencher os pensamentos. Em seguida buscaria um lugar sossegado, não longe que impedisse visitas aos amigos, irmãos, nem tão perto a me impregnar dos vícios da cidade grande.

Antes de voar  nas asas da TAP, busquei um cantinho na fria Serra da Russa, acompanhado dos Olhos Claros, certo de experimentar a quietude.

Nesse meio tempo todos precisamos nos recolher e decidimos permanecer no interior por oferecer ares saudáveis.

Dizer que foi de súbito ou sorrateiro, não sei. Verdade é que se implantou momentos de medo, dor nos dias que se alongaram em meses, anos e me fez reavaliar a ordem do planejado. Acomodamos nossas vidas em uma pequena casa e lá nos ajudamos na aprendizagem de uma maneira de viver diferente de até então.

Das novas vivências, o convívio com um tal Freud, o gato e a negra cadela, Amora nos trouxe alegria, além da chegada de mais um neto. Vieram meio aos tijolos, cimento e telhas da futura vivenda se instalando no pequeno sítio escolhido para guarida.

Chegamos, então, ao depois da mistura de emoções providenciada pela vida, com a promessa de modificações nos arranjos sociais, nos empregos, equipamentos tecnológicos capazes de oferecer mais conforto, bem-estar, segurança. Minha esperança é que não esqueçamos de nos aproximarmos uns aos outros. Abraços, conversas, risos são bem-vindos.

Escrevo do escritório da casa no sítio no retorno a este espaço criado para expor histórias passadas ou inventadas, desejoso por conversar e provocar risos.

Abraços todos os leitores, amigos.