Amplitude modulada
AJFontes
O
Sputnik II passeou com Laika no espaço sideral há mais de uma década. O norte
inunda de novidades o lado de baixo do equador. Na Aquarela do Brasil, entre os
altos coqueiros, num canto de chão agrestino, a primeira espinha reflete no
espelho embaçado. No queixo, abaixo do nariz que não para de crescer.
- Não deixe a
toalha no chão!
Arrasto o cheiro
do almoço na travessia do corredor, ao lado da cozinha, cantando chiclete com banana.
Fecho a porta, jogo a toalha na cama. Abro o guarda-roupa, tiro a samba canção
da gaveta, a calça azul-marinho e a camisa volta ao mundo. Apanho o rádio de
pilha no canto, entre a lateral da cama e o colchão.
Sem a presença dos
irmãos, que estudam no período da manhã, faço o dever de casa na mesa da copa,
ouvindo Dalva de Oliveira, interpretada pela ex-cantora do coral da igreja,
minha mãe.
- Está prestando
atenção à lição?
- Eu tô...eu tô.
Volto para o livro, sem entender como ela, de costas, enxerga os cochilos na
mesa.
Tenho um tempo
livre, agora. Atravesso a sala entre os móveis. A cristaleira, fica na parede do
outro lado dos dois quartos. A televisão, em cima da mesinha de canelas finas,
só funciona no fim da tarde. Empurro a cadeira de balanço no chão do terraço e
ouço as canções que você fez pra mim. A nuvenzinha balança no céu azul. No meio
da avenida, as vagens secas penduradas nos galhos dos flamboaiãs chacoalham quando
os carros passam para lá e para cá. Ouço os risos das meninas que voltam do
colégio e ajeito o corpo.
- O almoço está na
mesa!
- Já vou.
Na Capital do
Agreste são precisamente onze horas e quarenta e cinco minutos. A hora certa é um
oferecimento das organizações... Pronto. Ela brilha no meio das outras. A
morena olha na minha direção e ilumina o terraço. Vira o rosto e levanta o
nariz quando esboço um sorriso.
O prato com
feijão, arroz, farofa d’água e carne de molho, preenche o vazio do estômago. O
ponche de laranja ajuda a descer e a fatia de goiabada sara as feridas do
coração. No meio do silencio que toma conta do mundo, após o repouso dos
talheres, sento na cama. A cabeça tomba, os olhos insistem em fechar. Que nem
robô, calço os sapatos, visto a camisa da farda, apanho a bolsa de couro com os
livros. O rádio fica no canto.
A sombra se
esconde embaixo dos pés, na calçada. As engrenagens da cabeça são azeitadas com
as novas histórias e piadas dos colegas encontrados nas esquinas. Não atinamos
quando os paralelos do calçamento se transformam na areia da estrada que nos
leva ao prédio em L, solto no terreno sem muros.
Na sala de paredes
altas, janelões abertos, ecoam os gritos e vozes desafinadas; os assentos das
carteiras estalam ao sentarmos. A professora de português entra depois do toque
da campainha. Dona Celeste, acompanha a turma desde o exame de admissão. Na
segunda aula, Ismael conta histórias antigas e novas. Um dia, não entendi
alguma coisa e questionei. Aproximou com o dedo nos lábios. Hoje em dia a gente
não fala tudo que pensa. As paredes têm ouvidos. Calei. Lembrei da conversa com
os amigos e tentei identificar o dedo-duro.
As conversas,
brigas, o ensaio da banda e o caminho de volta, são os mesmos de ontem. Também
se repetem as brincadeiras dos irmãos entre os canteiros de casa que atravesso
rápido.
Volto a tempo de
ver mamãe se despedir da vizinha, por cima do muro da casa gêmea com a nossa.
Eu encosto no portão. Gosto do chorinho que ouço no rádio. Passam as pastas,
bolsas e o pacote de pão, na mão desse pedacinho do céu. O vestido florido
esconde só um pouquinho das coxas e o decote descobre o colo do peito. Olha pelo
canto do olho, morde o lábio inferior para esconder o sorriso quando passa. As
ancas ondulam. Eita! As flores coloridas encontram o linho branco das calças de
papai.
Dou meia-volta, afundo
no sofá e grudo os olhos na televisão.
- Benção papai?
- Deus te abençoe.
As propagandas,
nos intervalos de Nacional Kid, hipnotizam. Acordo com o cheiro da sopa e a
família corta o pão, passa a manteiga e sorve a primeira colherada. As
histórias do dia alcançam o último gole de café.
Diferente da hora
do almoço, meu corpo não para.
- Mamãe, vou passear na calçada.
- Volte às nove.
- Dez.
- Nove horas. Nem
um minuto a mais.
Poucos ousam incomodar
a avenida. No prédio cinza da Rádio Difusora, luzes salpicam os jardins. Atravesso
o portão e leio o anuncio da peça A feira de Caruaru, no cartaz ao lado da
entrada do teatro.
O homem que se
aproxima passa todos os dias em frente de casa.
- Tudo bem? Gosta
de teatro?
Aceno que sim, com
a cabeça.
- Vital! Vamos
começar.
Ele entra, olha
para trás.
- Vem. Assiste ao
ensaio.
Entro em uma fila
e sento no meio do mar de cadeiras, ouvindo as mulheres cantando. Um homem,
parado ao lado. Não, não, não! Vital levanta de uma fila mais adiante, sobe no
palco, fala com as mulheres, volta. Elas cantam novamente. Isso, isso! Vital
aplaude. Eles repetem mais uma vez, e outra. A cara marcada, do homem no palco
lembra o matuto que vi ontem na rua perto da feira. Desceu do Jeep Willys,
pagou o frete, baixou o garajau da capota, ajudado pela filha, alvinha, olhos
verdes. Ficaram um tempo parados na frente da loja, vendo o LP girar na
radiola. Será que ele conseguia ler o nome da marca Abc canarinho, no cartaz?
Talvez, de ouvir, conhecesse a música: A volta do boêmio.
Com as mãos no
bolso, ando pela calçada. Cansei de ouvir o pessoal repetir. Para eles é
trabalho.
- Boa noite, moço.
Magro, alto, capote
dobrado no ombro, cassetete pendurado no punho. A camisa branca deixa à mostra
o cabo da peixeira. Talvez esconda um revólver. Quieto nas sombras, observa os
movimentos. Conhece as trabalhadoras das casas, nos quarteirões próximos,
conquistadas com a fala mansa, cabeleira cheia, preta igual ao bigode bem
aparado. Faz-se meu amigo, talvez pela satisfação em substituir o tio que ensina
os sobrinhos apressados em crescer. Então, ele conta as melhores piadas, os
detalhes dos namoros que aproveito nas orgias solitárias e as notícias das
moças.
Tem uma que vive
perguntando por você. Sei quem é. Também sei que uns caras levaram dedada do
enfermeiro Heleno e dizem que pegaram a doença com ela. Calma rapaz, eu mesmo
verifiquei. Tá tudo certo. Aparece o anel de prata escurecida no dedo, quando ele
tira o palito de fósforo do canto da boca. Falando na diaba, lá vem.
No escuro embaixo
da algaroba, a silhueta parada. O apito estridente se afasta, eu calo os medos
que aceleram o coração e desço a ladeira da rua. Vejo os peitos, pelo decote do
vestido justo. Ela avança e a luz mostra o dente de ouro na boca arrodeada de
carmim, as rugas nos cantos dos olhos. O cheiro do Alma de Flores me envolve.
- Eu gosto de ver
você sentado no terraço da sua casa, ouvindo o radinho de pilha.
Talvez o perfume
ou o risco dos bicos dos peitos em mim, a razão da tontura e mudez.
- Nunca teve uma
mulher, né? Vem cá.
Lado a lado na
calçada, vemos as estrelas assumindo o direito de mostrar o caminho entre as
moitas até a pequena clareira. Os grilos calam.
Sinto a respiração
no rosto. Os lábios roçam no pescoço, arrepio. O peito magro aparece a cada
botão aberto. A mão desliza e me encontra viril. O corpo se entrega e a cabeça
se espalha nas estrelas.
A cantiga do
inseto me traz de volta ao chão pedregoso. Que horas são?
Os dias feitos de
minutos que se arrastam me trazem ao espelho embaçado, passando a mão nos pelos
do queixo. Tá na hora. Aperto o cabo rosqueado na outra parte com a gilete. Espremo
o creme no pincel e esfrego. Demora, mas aparece espuma no rosto. Tudo do jeito
que vi. Na mesa, faço de conta que não reparo papai colocar a xícara no pires,
olhar meu rosto e sorrir.
As estrelas
aproveitam a ausência da lua e brilham. Luzes coloridas piscam na parede do
terraço, refletindo às lâmpadas da árvore montada na sala, junto aos outros
enfeites. Balanço a cadeira e, feito trailer de filme, o ano passa no teto do
terraço. Quem é o tal dedu-duro? O rei sabe das coisas: O tempo apagou a paixão
pela morena. Essa época só dá ele no rádio, mas foi no São João que olhei pro
céu e encontrei o amor. Era linda! Mas em agosto ou setembro, a gente acabou. Acho
que tive outra namorada, não lembro. Somente uma mulher não sai da cabeça.