segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Deixa estar




Deixa estar

AJ Fontes

Nos fios soltos das fitas coloridas presas ao punho flutuam lugares, sorrisos e lágrimas. Rostos cansados assistem ao desfile sobre a esteira abaixo de um painel que indica o local de onde vieram. Grandes, pequenas, novas e velhas. Lá vem. Duas ou três décadas de convivência? Vai saber!

Alto-falantes anunciam, após um sinal: locais, horários, advertências. Às costas, gritos e aplausos quando as portas se abrem e aparece a faixa: BEM-VINDO. Outros cruzam os braços, espicham o pescoço em busca de alguém do lado de cá.

- Vem de onde?

A conversa prossegue sob o sol escondido nas nuvens, que deixa o ar abafado e suados os jovens em suas fardas e os homens de ternos que aguardam o semáforo ordenar a travessia.

Depois do pagamento, as fitas tremem no trepidante caminho das rodinhas entre as pedras do piso até o hall do elevador.

As sujas vão direto para máquina de lavar. O espelho reflete o rosto cansado, mas satisfeito. Novos lugares para lembrar, amigos com quem compartilhar momentos futuros.

Banhado, alimentado, a cabeça recostada no sofá. As copas das árvores balançam emolduradas pela janela.

Faz tempo que estou só. Gosto, mas... Talvez seja um momento de encontrar uma bruxinha que me seduza; me encante. Sempre bate a insegurança. Sou capaz? Dou conta? A falta de maturidade acompanhou minhas justificativas até algum tempo atrás. Convenha cara! Não seria essa agora, depois de cinco décadas de vivência.

A testa sua, levanta, assovia let it be, acompanha com a cabeça balançando enquanto chega na cozinha e enche o copo com água.

Quero compartilhar bons momentos com uma mulher, mas existe aquela coisa de manter indefidamente. Pra que se perder na possibilidade do futuro se encontramos aqui a realidade do presente?

A garganta sente o frescor que lhe extasia e seguem os afazeres da casa sem atenção desde o mês passado. Transponho papéis acumulados há meses da lixeira do escritório para o mesmo saco onde tudo que me serviu por algum tempo irá, inclusive a caixinha colorida guardiã de um certo azulzinho. Dou conta? Dou conta? Dou conta? Let it be, let it be.

Os ventos levaram as nuvens e o sol não está mais ali. Escondido, deixa uma mancha rubro-violeta na linha do chão distante. Os cantos limpos do apartamento mostram o vazio do peito. Puxa vida, isso é letra de bolero ruim! No impulso, arrasto a careta e o resto do corpo, depois de alinhado no jeans, ao bar.

Todos à mesa. Cabeças brancas ou desprovidas de pelos balançam ao gargalhar, os amigos abarcam carinhosamente os copos com a mão. O mesmo garçom substitui a garrafa ao cair a última gota de cerveja em qualquer deles.

Palmas ao desaparecido que fui até então. Perguntas e respostas sobre filhos, netos; a última piada do Joca.

Uma figura longa, vestido branco estampado com flores coloridas, cabelos loiros dança embaçada nas lágrimas de riso. Apanho um guardanapo na mesa e seco os olhos. Ela senta na mesa à frente. Sorri com as amigas e os olhos claros encontram os meus.

Um gole alivia a secura da garganta; as piadas são apenas sons.

Levanto, sigo o caminho que enxergo.
 

Livro de contos: Mantas e Lençóis

Amigos.
           Faz algum tempo que não publico textos nesse espaço. A razão é o livro que estarei lançando no próximo mês de novembro. Tomou tempo e esforço, além do novo caminho que a vida me apresenta: Aposentadoria. O novo ciclo tem seu jeito diferente de mostrar os dias. Não que seja enfadonho, ao contrário, as horas se encurtam ao lidar com as atividades que se apresentam. Mas, eis-me aqui.
          Na sequência apresento um texto recente.
          Abraço a todos.