terça-feira, 28 de março de 2017

Mantas e lençóis












Mantas e lençóis

 

AJFontes

 
Os passos levantam o barro vermelho. O vento mistura o verde das algarobas enfileiradas. As sombras se alongam até o outro lado da rua.
O carcará voa em círculos. Com ele, mergulho na lembrança do condor a plainar sobre o vale.
 A água desabava do paredĂŁo e emudecia a mata. A figura alongada de tĂşnica laranja, listras azuis, capacete dourado, surgiu do lado da cortina espumada.
Caminhei sobre as pedras nas margens do lago.
- Sonhei com vocĂŞ.
- Faz dois anos do seu tempo. Vamos.
Entramos na escuridão por trás da cachoeira. Surgiram edifícios altos, estreitos, perfis ondulados; veículos voadores. Viajamos a planetas e dimensões diferentes. Vi o universo no passado, presente e futuro. Despedi-me do amigo ao som das águas, sombreado pelas asas da grande ave.
O pó fino salta das botas, segue até a fresta na janela. A luz mal consegue varar o vidro para iluminar as três mesas do salão na pousada da Margarida. Na última, dois copos, uma garrafa de cachaça, dois pares de olhos vermelhos.
Atrás do balcão a silhueta esguia, ancas em boa medida, saia azul, estampas de flores amarelas e bata branca de alças finas nos ombros amorenados. Ondas negras escorrem da cabeça ao meio das costas.
- Boa tarde. A senhora tem quarto vago?
O olhar de Miguel passeia pelos seios, colo, pescoço. Responde ao sorriso que recebe.
- Tem sim. O banheiro Ă© no fim do corredor.
- Chuveiro?
- NĂŁo. Cuia. Mostra o livro aberto.
Demora na visĂŁo do rosto brejeiro. Assina.
 - Vem de longe?
- Xinguara, no Pará.
- Longe! Subindo, é a terceira porta. Se quer jantar, tem macaxeira, charque, cuscuz e café. Sirvo no salão.
- Obrigado. Tomo banho e volto.
Embriagado pelo perfume da flor de canela, ouço mĂşsica no ranger das tábuas sob os pĂ©s. A maçaneta emperrada me traz Ă  realidade. ApĂłs dias dormindo na mata, em calçadas e poltronas de Ă´nibus, a cama encostada na parede Ă© como aconchego de mĂŁe. Apoio a mochila na prateleira do guarda-roupa em frente, retiro roupas limpas sob medalhas de ouro, maracás coloridos, cristais de quartzo. Nesses quarenta anos tanto recolhi quanto deixei pra trás.      
Sem a poeira de cinco Estados, espero sentado. O falatĂłrio mostra o efeito da bebida na mesa de fundo.
Margarida observa da cozinha homem mais velho se aproximar.
- Boa noite, amigo. O senhor vem de longe. A seca Ă© a mesma praquelas bandas?
- Chuva mesmo, só no Pará. Nos outros lugares o céu não tem um risco de nuvem.
- Pronto moço, sua janta. Olha firme e franze a testa.
Já não tinha gostado desses caras, agora ela me vem com essa cara franzida.
- Tá servido moço?
- Agradecido. TĂ´ tomando uma com o companheiro ali.
Passa a mão sobre a mesa, aponta para o fundo do salão e deixa cair alguma coisa na caneca de café.
- Aproveite seu jantar, amigo.
Corto a macaxeira, enquanto procuro sinais estranhos no café.
A mulher sai da cozinha. Para junto a mim e de costas para os caras.
- Tá gostando da comida? Troca a caneca da mesa por outra que escondia no avental.
- Muito boa e o café, quente e forte.
Ela volta Ă  cozinha.
Vai ver querem a bolsa. Levam não. A manta. Ganhei do velho inca cheio de magias. Ainda ouço ele dizer: Quando não quiser ser visto se cubra.
- Até amanhã.
- Já vai dormir?
- TĂ´ cansado.
- Bom sono.
Miguel esvazia a mochila na cama. Ah, tá aqui. A cor assume o vermelho da coberta ou o branco, quando junto à parede caiada.
O ranger do assoalho alerta. O cheiro de aguardente denuncia a presença. Ouve os movimentos.
CadĂŞ ele? E a bolsa? VocĂŞ viu quando entrou? Sim. Fiquei na escada e vi. Margarida nem notou.
Encolhido no canto, junto à bagagem, vê a traseira das calças do velho pela brecha da manta. Na cintura, a bainha de couro guarda a faca que ele retira.
Vamos descer.
Atento aos sons fora do quarto, torceu a manta em tira, prendeu à cintura, segurou a faca. Estão lá embaixo.
Corredor, escada, salão. Atirou a faca. Cravou na parede entre os homens. O velho se jogou para trás e caiu da cadeira. O amigo, cuspiu a bebida. Correu, chutou a pistola na mão daquele caído, socou e arremessou o outro na parede, puxou a manta, jogou sobre ele. Ouviu tiros, apareceu, socou o atirador, tomou a arma, virou-se, atirou na faca. Tim... Tim... Tim... O cano do revólver indica a saída. Mãos sobre as cabeças, pé ante pé. Na rua, são engolidos pela noite.
Sinto o calor do corpo de Margarida. A boca junto ao meu rosto.
Bruxo.
Deixo-me levar, laçado pelas ondas de seu requebro. Luzes dançam por todo o quarto de hálito inebriante. Nossos olhares se encontram e cegam. Somos o agito das nuvens, o rasgo dos raios, a explosão dos trovões; o transbordo das águas. Tudo. Em um átimo: Nada. Entregues à brisa, pousamos serenos no espelho do lago.
O sol desliza no fio de suor entre os peitos da cabocla.
Bruxa.
A janela do Ă´nibus emoldura o marrom da caatinga. Os solavancos embalam os cheiros e gemidos guardados na mochila. Outra cidade aparece na curva.