Mantas
e lençóis
AJFontes
Os
passos levantam o barro vermelho. O vento mistura o verde das algarobas
enfileiradas. As sombras se alongam até o outro lado da rua.
O
carcará voa em cĂrculos. Com ele, mergulho na lembrança do condor a plainar
sobre o vale.
A água desabava do paredão e emudecia a mata.
A figura alongada de tĂşnica laranja, listras azuis, capacete dourado, surgiu do
lado da cortina espumada.
Caminhei
sobre as pedras nas margens do lago.
-
Sonhei com vocĂŞ.
-
Faz dois anos do seu tempo. Vamos.
Entramos
na escuridĂŁo por trás da cachoeira. Surgiram edifĂcios altos, estreitos, perfis
ondulados; veĂculos voadores. Viajamos a planetas e dimensões diferentes. Vi o
universo no passado, presente e futuro. Despedi-me do amigo ao som das águas, sombreado
pelas asas da grande ave.
O
pó fino salta das botas, segue até a fresta na janela. A luz mal consegue varar
o vidro para iluminar as trĂŞs mesas do salĂŁo na pousada da Margarida. Na Ăşltima,
dois copos, uma garrafa de cachaça, dois pares de olhos vermelhos.
Atrás
do balcĂŁo a silhueta esguia, ancas em boa medida, saia azul, estampas de flores
amarelas e bata branca de alças finas nos ombros amorenados. Ondas negras
escorrem da cabeça ao meio das costas.
-
Boa tarde. A senhora tem quarto vago?
O
olhar de Miguel passeia pelos seios, colo, pescoço. Responde ao sorriso que
recebe.
-
Tem sim. O banheiro Ă© no fim do corredor.
-
Chuveiro?
-
NĂŁo. Cuia. Mostra o livro aberto.
Demora
na visĂŁo do rosto brejeiro. Assina.
- Vem de longe?
-
Xinguara, no Pará.
-
Longe! Subindo, Ă© a terceira porta. Se quer jantar, tem macaxeira, charque, cuscuz
e café. Sirvo no salão.
-
Obrigado. Tomo banho e volto.
Embriagado
pelo perfume da flor de canela, ouço música no ranger das tábuas sob os pés. A
maçaneta emperrada me traz à realidade. Após dias dormindo na mata, em calçadas
e poltronas de Ă´nibus, a cama encostada na parede Ă© como aconchego de mĂŁe. Apoio
a mochila na prateleira do guarda-roupa em frente, retiro roupas limpas sob
medalhas de ouro, maracás coloridos, cristais de quartzo. Nesses quarenta anos tanto
recolhi quanto deixei pra trás.
Sem
a poeira de cinco Estados, espero sentado. O falatĂłrio mostra o efeito da
bebida na mesa de fundo.
Margarida
observa da cozinha homem mais velho se aproximar.
-
Boa noite, amigo. O senhor vem de longe. A seca Ă© a mesma praquelas bandas?
-
Chuva mesmo, só no Pará. Nos outros lugares o céu não tem um risco de nuvem.
-
Pronto moço, sua janta. Olha firme e franze a testa.
Já
nĂŁo tinha gostado desses caras, agora ela me vem com essa cara franzida.
-
Tá servido moço?
-
Agradecido. TĂ´ tomando uma com o companheiro ali.
Passa
a mĂŁo sobre a mesa, aponta para o fundo do salĂŁo e deixa cair alguma coisa na
caneca de café.
-
Aproveite seu jantar, amigo.
Corto
a macaxeira, enquanto procuro sinais estranhos no café.
A
mulher sai da cozinha. Para junto a mim e de costas para os caras.
-
Tá gostando da comida? Troca a caneca da mesa por outra que escondia no avental.
-
Muito boa e o café, quente e forte.
Ela
volta Ă cozinha.
Vai
ver querem a bolsa. Levam nĂŁo. A manta. Ganhei do velho inca cheio de magias. Ainda
ouço ele dizer: Quando não quiser ser visto se cubra.
-
Até amanhã.
-
Já vai dormir?
-
TĂ´ cansado.
-
Bom sono.
Miguel
esvazia a mochila na cama. Ah, tá aqui. A cor assume o vermelho da coberta ou o
branco, quando junto Ă parede caiada.
O
ranger do assoalho alerta. O cheiro de aguardente denuncia a presença. Ouve os
movimentos.
CadĂŞ
ele? E a bolsa? VocĂŞ viu quando entrou? Sim. Fiquei na escada e vi. Margarida nem
notou.
Encolhido
no canto, junto à bagagem, vê a traseira das calças do velho pela brecha da
manta. Na cintura, a bainha de couro guarda a faca que ele retira.
Vamos
descer.
Atento
aos sons fora do quarto, torceu a manta em tira, prendeu Ă cintura, segurou a
faca. Estão lá embaixo.
Corredor,
escada, salĂŁo. Atirou a faca. Cravou na parede entre os homens. O velho se
jogou para trás e caiu da cadeira. O amigo, cuspiu a bebida. Correu, chutou a
pistola na mĂŁo daquele caĂdo, socou e arremessou o outro na parede, puxou a
manta, jogou sobre ele. Ouviu tiros, apareceu, socou o atirador, tomou a arma, virou-se,
atirou na faca. Tim... Tim... Tim... O cano do revĂłlver indica a saĂda. MĂŁos
sobre as cabeças, pé ante pé. Na rua, são engolidos pela noite.
Sinto
o calor do corpo de Margarida. A boca junto ao meu rosto.
Bruxo.
Deixo-me
levar, laçado pelas ondas de seu requebro. Luzes dançam por todo o quarto de
hálito inebriante. Nossos olhares se encontram e cegam. Somos o agito das
nuvens, o rasgo dos raios, a explosão dos trovões; o transbordo das águas. Tudo.
Em um átimo: Nada. Entregues à brisa, pousamos serenos no espelho do lago.
O
sol desliza no fio de suor entre os peitos da cabocla.
Bruxa.
A
janela do Ă´nibus emoldura o marrom da caatinga. Os solavancos embalam os
cheiros e gemidos guardados na mochila. Outra cidade aparece na curva.