sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Assim caminha a humanidade


Assim caminha a humanidade


 

Olhos embaçados, aos poucos percebe o verde pálido das paredes, o branco do armário estreito. A porta entreaberta mostra roupas penduradas. A língua grossa. Cai uma gota cristalina do saco plástico e escorre pela mangueira fina até a agulha, cuja metade entra nas costas da mão esquerda. A cabeça dói.

- Olá! Bom ver o senhor acordado. Sorridente, a moça saca o equipamento do bolso da saia. Depois do susto, ainda aperta o braço com esse negócio.

- Boca seca, barriga dolorida, a cabeça dói. Não tem nada bom.

- Calma. Vai passar. Quando quiser chamar, aperte o botão do lado. Melhor não falar ou fica cheio de gases, disse ao atravessar a porta.

Sozinho? Flavinha foi visitar a mãe, só volta depois de amanhã. Não poderia adivinhar. Que horas são? Dói. Quarto verde. Dormi? Relatório.... À tarde vou... Caminhar. Estou... A enfermeira...  Novamente?

- Olá seu Fonseca. Como está?

- Estava dormindo doutor. Tá muito dolorido.

- É normal. Seu abdômen foi cortado. O senhor chegou ao hospital com início de infecção no apêndice. A cirurgia evitará problemas. Lá vem explicações. Sei, sei. Sou forte. Bom chegar no momento certo. Parece o homem da cobra.

- Dois dias! Doutor, pensei sair amanhã.

- O senhor mora só. Não é tão jovem. Aqui está seguro. Amanhã, caminhe pelo corredor. Passo às três da tarde para ver como está. Boa noite seu Fonseca.

Cadê o tal botão?

- Boa noite seu Fonseca. Sou a enfermeira de plantão.

- Preciso ir ao banheiro.

- Vamos lá.

Nem lembro quando comecei a correr. O embarque no voo da VARIG, dia trinta de dezembro de mil, novecentos e setenta e seis. Tinha Vinte. Ou vinte e um? Estava no apogeu da forma física. Ah! Aquelas belezas passando no corredor do avião. Serviço de primeira. Pratos de louça, talheres de metal, copos de vidro.

Dia seguinte, esquentava meu corpo em frente ao edifício Cásper Líbero, na Paulista. Hehe, terra da garoa. Éramos mais de quatrocentos homens e mulheres. Largamos meia hora antes do ano novo. O trote seco no asfalto. Mantive o ritmo nos sete mil e trezentos metros. Na reta final, o corpo era levado pela força que restava no coração. Cheguei depois de vinte e seis minutos e trinta e poucos segundos. O chileno barbudo ganhou. Mas eu estive lá, na chegada. Agora preciso de ajuda, pra urinar.

- Pronto. Está confortável? Os botões ao lado controlam a altura e inclinação do colchão.

- Obrigado.

Aproveita o inesperado brinquedo e procura a posição. Um longo suspiro trás o sono.

Dói. Nem tossir posso.

- Com licença. Bom dia.

Do carrinho estacionado na porta, a moça retira um prato e um copo. Arma a mesa de apoio na cama.

– Sua dieta. Bom dia.

Na hora. A fome apertou. Apreciando o insípido desjejum, observa o papel sobre a mesa no canto. O atestado. Preciso entregar isso hoje. Assim diz a CLT, mas como? Depois de 29 anos de casa sem faltas, a um ano da aposentadoria, não vou falhar agora. Será que posso?

Usando os botões, baixa a cama. Senta-se devagar. Essas rodinhas no suporte ajudam. Calça os chinelos, caminha até o banheiro. Encontrei um jeito. Assim dói pouco. Lava as mãos. Puxa vida, minha cara tá feia.

Segura o atestado, abre uma fresta na porta. Ninguém. Sai lento. O suporte acompanha. O trabalho toma a atenção das enfermeiras. Na porta adiante lê: ENTRADA PERMITIDA SOMENTE AOS FUNCIONÁRIOS. Já dentro, desvia de copeiras, faxineiras, descobre corredores, até encontrar a luz do dia. Esse vento frio na bunda. Vou assim mesmo.

Entra no primeiro táxi parado. O suporte primeiro.

Meu Deus. Um doido?

- Vamos ao centro, rápido. Digo o endereço no caminho. Vamos!

O motorista dá partida e segue.

A irritação se dissipa no semáforo fechado, ao assistir o beijo do casal parado na rua, interrompido pelo som histérico das buzinas. O caos urbano não permite outra visão agradável até o destino.

- Espere. Não demoro.

Desliga o motor.

- Bom dia seu João.

O porteiro arregala os olhos.

Aristides não vai sentir o gostinho de punir esse macaco velho. Vi aquele fedelho crescer aqui. Agora, assumiu a direção e quer ver minha caveira. Não vai não.

No trajeto é cumprimentado por colegas. Responde com acenos de cabeça.  O modelo chama a atenção. Gostam do bundão branco? Aquela enfermeira avisou sobre os gases.

A secretária monta um rosto de boas-vindas.

- Bom dia seu Fonseca. Já está de volta?

- Por favor, Aristides.

- Senhor Aristides. A senhor Fonseca quer falar. Sim, senhor. Pode entrar.

Da cadeira, por trás da mesa de trabalho, Aristides esboça um sorriso, mas logo desmancha diante da figura que se aproxima. Fonseca levanta a folha de papel e deposita lentamente sobre a mesa, sem desviar os olhos do patrão. Segura o suporte, dá meia volta e caminha, quando os gases acumulados rompem os ares formais do ambiente.
AJFontes