Assim caminha a humanidade
Olhos
embaçados, aos poucos percebe o verde pálido das paredes, o branco do armário
estreito. A porta entreaberta mostra roupas penduradas. A língua grossa. Cai uma
gota cristalina do saco plástico e escorre pela mangueira fina até a agulha,
cuja metade entra nas costas da mão esquerda. A cabeça dói.
-
Olá! Bom ver o senhor acordado. Sorridente, a moça saca o equipamento do bolso
da saia. Depois do susto, ainda aperta o braço com esse negócio.
- Boca
seca, barriga dolorida, a cabeça dói. Não tem nada bom.
-
Calma. Vai passar. Quando quiser chamar, aperte o botão do lado. Melhor não
falar ou fica cheio de gases, disse ao atravessar a porta.
Sozinho?
Flavinha foi visitar a mãe, só volta depois de amanhã. Não poderia adivinhar. Que
horas são? Dói. Quarto verde. Dormi? Relatório.... À tarde vou... Caminhar. Estou...
A enfermeira... Novamente?
- Olá
seu Fonseca. Como está?
- Estava
dormindo doutor. Tá muito dolorido.
- É
normal. Seu abdômen foi cortado. O senhor chegou ao hospital com início de infecção
no apêndice. A cirurgia evitará problemas. Lá vem explicações. Sei, sei. Sou
forte. Bom chegar no momento certo. Parece o homem da cobra.
-
Dois dias! Doutor, pensei sair amanhã.
- O
senhor mora só. Não é tão jovem. Aqui está seguro. Amanhã, caminhe pelo corredor.
Passo às três da tarde para ver como está. Boa noite seu Fonseca.
Cadê
o tal botão?
- Boa
noite seu Fonseca. Sou a enfermeira de plantão.
- Preciso
ir ao banheiro.
-
Vamos lá.
Nem
lembro quando comecei a correr. O embarque no voo da VARIG, dia trinta de
dezembro de mil, novecentos e setenta e seis. Tinha Vinte. Ou vinte e um?
Estava no apogeu da forma física. Ah! Aquelas belezas passando no corredor do
avião. Serviço de primeira. Pratos de louça, talheres de metal, copos de vidro.
Dia
seguinte, esquentava meu corpo em frente ao edifício Cásper Líbero, na
Paulista. Hehe, terra da garoa. Éramos mais de quatrocentos homens e mulheres.
Largamos meia hora antes do ano novo. O trote seco no asfalto. Mantive o ritmo
nos sete mil e trezentos metros. Na reta final, o corpo era levado pela força
que restava no coração. Cheguei depois de vinte e seis minutos e trinta e
poucos segundos. O chileno barbudo ganhou. Mas eu estive lá, na chegada. Agora
preciso de ajuda, pra urinar.
-
Pronto. Está confortável? Os botões ao lado controlam a altura e inclinação do
colchão.
- Obrigado.
Aproveita
o inesperado brinquedo e procura a posição. Um longo suspiro trás o sono.
Dói.
Nem tossir posso.
- Com
licença. Bom dia.
Do carrinho
estacionado na porta, a moça retira um prato e um copo. Arma a mesa de apoio na
cama.
– Sua
dieta. Bom dia.
Na
hora. A fome apertou. Apreciando o insípido desjejum, observa o papel sobre a mesa
no canto. O atestado. Preciso entregar isso hoje. Assim diz a CLT, mas como? Depois
de 29 anos de casa sem faltas, a um ano da aposentadoria, não vou falhar agora.
Será que posso?
Usando
os botões, baixa a cama. Senta-se devagar. Essas rodinhas no suporte ajudam.
Calça os chinelos, caminha até o banheiro. Encontrei um jeito. Assim dói pouco.
Lava as mãos. Puxa vida, minha cara tá feia.
Segura
o atestado, abre uma fresta na porta. Ninguém. Sai lento. O suporte acompanha. O
trabalho toma a atenção das enfermeiras. Na porta adiante lê: ENTRADA PERMITIDA
SOMENTE AOS FUNCIONÁRIOS. Já dentro, desvia de copeiras, faxineiras, descobre
corredores, até encontrar a luz do dia. Esse vento frio na bunda. Vou assim
mesmo.
Entra
no primeiro táxi parado. O suporte primeiro.
Meu
Deus. Um doido?
- Vamos
ao centro, rápido. Digo o endereço no caminho. Vamos!
O
motorista dá partida e segue.
A
irritação se dissipa no semáforo fechado, ao assistir o beijo do casal parado
na rua, interrompido pelo som histérico das buzinas. O caos urbano não permite
outra visão agradável até o destino.
-
Espere. Não demoro.
Desliga
o motor.
- Bom
dia seu João.
O
porteiro arregala os olhos.
Aristides
não vai sentir o gostinho de punir esse macaco velho. Vi aquele fedelho crescer
aqui. Agora, assumiu a direção e quer ver minha caveira. Não vai não.
No
trajeto é cumprimentado por colegas. Responde com acenos de cabeça. O modelo chama a atenção. Gostam do bundão
branco? Aquela enfermeira avisou sobre os gases.
A secretária
monta um rosto de boas-vindas.
- Bom
dia seu Fonseca. Já está de volta?
- Por
favor, Aristides.
-
Senhor Aristides. A senhor Fonseca quer falar. Sim, senhor. Pode entrar.
Da
cadeira, por trás da mesa de trabalho, Aristides esboça um sorriso, mas logo
desmancha diante da figura que se aproxima. Fonseca levanta a folha de papel e
deposita lentamente sobre a mesa, sem desviar os olhos do patrão. Segura o
suporte, dá meia volta e caminha, quando os gases acumulados rompem os ares
formais do ambiente.
AJFontes